Os povos tradicionais da Ilha do Mel, no Paraná, lançaram hoje (10) o Protocolo Comunitário de Consulta Prévia, Livre e Informada. Trata-se de um documento legal que estabelece normas para ouvir estas populações sempre que alguma medida tiver potencial para gerar impactos no território onde vivem. O documento deverá ser observado tanto por órgãos públicos como por entidades privadas.
Segundo Marinelli Campos Pedrussi, secretária da Associação dos Nativos da Ilha do Mel (Animpo), a criação do protocolo visa estabelecer mais um instrumento para dar voz a cerca de 70 famílias tradicionais da Ilha do Mel que estão ligadas historicamente à pesca artesanal e à agricultura e mais recentemente ao turismo. “Vem como instrumento jurídico para nos ajudar nesse processo e enaltecer nossas comunidades”, observa. O lançamento ocorreu às 17h em um evento que teve comidas e músicas típicas das comunidades locais.
Os protocolos de consulta encontram guarida na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), um tratado sobre os direitos dos povos indígenas e tribais.
Em vigor no mundo há 30 anos, ele foi aprovado no Congresso brasileiro em 2002, por meio do Decreto Legislativo 143, e promulgado em 2004, por meio do Decreto Presidencial 5.051. Tratados internacionais ratificados no Brasil são incorporados à legislação do país.
Um dos principais direitos dos povos tradicionais previstos pela Convenção 169 é a consulta prévia, livre e informada todas as vezes que qualquer medida legislativa ou administrativa for suscetível de afetá-los diretamente. Os desdobramentos são diversos: por exemplo, as secretarias de meio ambiente passaram a ser cobradas para ouvi-los sempre que um processo de licenciamento ambiental envolver atividades em seus territórios. Da mesma forma, a consulta deve ocorrer para a implementação de políticas públicas de educação e de saúde e para medidas que envolvam a salvaguarda de seus costumes, da sua cultura e das suas atividades econômicas.
O direito à consulta é reivindicado por diversas populações tradicionais. No Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), criado em 2004 e atualmente vinculado ao Ministério da Cidadania, há representação de 28 grupos étnicos: indígenas, quilombolas, povos de terreiro, pantaneiros, extrativistas, ribeirinhos, pomeranos, caiçaras, geraizeiros, ciganos, entre outros.
Um dos principais destinos turísticos da costa paranaense, a Ilha do Mel situa-se na embocadura da Baia de Paranaguá. As 70 famílias que se mobilizaram pelo protocolo de consulta situam-se nas praias de Brasília, Farol, Fortaleza e Praia Grande. São comunidades que convivem com a pressão da especulação imobiliária. Muitas áreas antes habitadas por nativos terminaram tomadas pela estrutura turística de pousadas, bares e restaurantes, bem como por casas de veraneio.
Nos últimos anos, as comunidades passaram a se organizar. Em meio à pandemia de covid-19, os nativos da Ilha do Mel se articularam junto ao Ministério Público do Paraná (MPPR) e conseguiram em julho, o enquadramento como grupo prioritário na campanha de vacinação. Apesar do Plano Nacional de Imunização (PNI) estabelecer a prioridade para as populações quilombolas, indígenas e tradicionais, elas enfrentaram dificuldades em muitos locais do país.
Para Marinelli, a mobilização tem se dado pelo desejo de maior participação na gestão do território. O protocolo demarca a diferença entre consulta e audiência pública e define a obrigatoriedade de uso de linguagem acessível, de apresentação prévia da pauta e do respeito ao tempo demandado pelas comunidades. Para a construção do documento, os nativos receberam assessoria do Centro de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental (Cepedis), vinculado à Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), e da organização não governamental Terra de Direitos. Diversos debates foram realizados nos últimos meses.
Em nota divulgada pela Terra de Direitos, a assessora jurídica da organização Jaqueline Andrade pontua que, na Ilha do Mel, há limitações históricas no acesso à direitos, dentre eles o direito à moradia em decorrência da especulação imobiliária, da exploração ambiental e da incompreensão dos modos de ser e viver das populações tradicionais que vivem em áreas ambientalmente protegidas. “O protocolo de consulta é importante instrumento que unifica a identidade tradicional e serve como um documento de enfrentamento das violações e garantia de direitos”, acrescenta ela.
Embora já existam diferentes decisões judiciais favoráveis aos povos tradicionais que levam em conta os protocolos de consulta, muitas vezes eles são ignorados tanto pelos órgãos públicos como pelos tribunais. Há três meses a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) organizou um seminário online sobre o tema para debater o cenário atual. Há uma incompreensão da comunidade jurídica na visão de Carlos Marés, ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) e professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).
“A consulta não é exatamente um direito. É uma decorrência do direito de existir dos povos. Esse direito de existência e de ter uma organização social própria como diz a Constituição Federal é essencial. A Convenção 169 ratifica esse direito a existir e de estar no território. Como já vem de um debate mais amadurecido, ela estabelece que os Estados nacionais realizem consultas cada vez que tomem medidas e determinações legais, administrativas ou legislativas, que possam afetar o direito à existência”, disse ele.
Direito de veto
Já existem mais de 60 comunidades no Brasil com protocolos de consulta estabelecidos. Marés avalia que elas funcionam como uma lei interna e foi uma solução construída por povos indígenas ou quilombolas e outras populações tradicionais que possuem estruturas sociais diferentes.
“Cada povo tem uma forma de se organizar. A maior parte deles não tem estruturas únicas de resposta. A sabedoria dos povos, porém, foi criando fórmulas de respostas. Precisaram reestruturar, a partir de seus conceitos, a forma de responder às questões apresentadas pelo Estado. E daí surgem os protocolos”, pontua.
Os participantes do seminário organizado pela OAB também discutiram os desafios para garantir que a consulta seja prévia, livre e informada conforme fixado pela OIT. Para a pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica do Peru e do Instituto Internacional de Direito e Sociedade (IIDS), Raquel Yrigoen Fajardo, ela não pode ser vista como mera formalidade que o Estado deve cumprir para fazer o que quiser.
“Essa consulta deve ser antes da aprovação da medida. Isso é muito importante porque temos visto concessões a mineradoras, madeireiras, petroleiras, além de ações em educação e saúde, sem consulta prévia. E muitas vezes as cortes dizem: ‘Não há problema. Pare a concessão, façam a consulta e depois continuem’. Isso não é possível. Se não houve consentimento prévio, todo o ato legislativo ou administrativo é nulo”, observa Raquel.
De acordo com Carlos Marés, os povos têm direito de veto às medidas que afetam seu território. “Se fosse apenas para dar consentimento, não seria uma consulta livre. Claro que os Estados podem mudar seus projetos e os povos podem pedir mudanças e estabelecer condições. Mas também há questões como destruição e diminuição do território que são inegociáveis para os povos. E os protocolos também servem para estabelecer os limites do consentimento”, afirma.